quinta-feira, 15 de julho de 2010

SOPA DE CAPELETTI

Dei a partida no carro, ajeitei o retrovisor, prendi o cinto e acelerei. Não havia imaginado que este dia de sol seria cenário de um funeral, mas a imprevisibilidade é uma das coisas que mais me interessa na vida. Não importam as circunstancias.

Meu destino foi sendo esquecido conforme o vento, que entrava pelo teto solar do meu carro novo, fazia voar meus cabelos e meus pensamentos. Camila era uma figura cheia de vida e desejos em minha memória, e era sua presença que eu sentia ao meu lado.


As curvas verdes da rota romântica, perto da pequena Dois Irmãos, iluminadas pelo sol da tarde de inverno, me pareceram muito com os caminhos da Europa, que eu e ela planejamos visitar logo.

O cemitério era bem próximo à estrada e desci do carro ainda zonzo pelo vento. Já era tarde, e o cortejo chegava ao fim. Me aproximei lentamente do grupo que parava em torno de uma pequena capela, para onde o caixão estava sendo levado.

Encostado em uma árvore esperei pelo momento em que as lágrimas surgiriam espontâneas, em que os presentes viriam até mim com suas graves condolências, em que seria reconhecido como viúvo. Mas nada disso ocorreu.

Não eram os comuns interioranos que me vinham, mas o perfume de Camila. Seus cabelos dourados cheirando a camomila, ou algo do gênero. O som grave da voz dela sussurrando besteiras, que, nunca, nem ouvi com atenção. O sol da tarde entrando pela janela do quarto do hotel, o lanche cheirando a torrada de presunto e queijo com café. Sua risada, sua risada. Ver seu rosto branco brilhando era meu maior prazer na aula do curso de gestão nas noites de quinta-feira. Ainda sentia sua pele nas minhas mãos quando entrava em sala. Minhas narinas cheias de sensações, apelos saciados, pela ainda arrepiada. Camila me provocava com sua cara de nada aconteceu entre nós há poucos minutos caro professor. E quem seria aquela doida com cara de santa ?

Vi as pequenas meninas louras, que me pareciam miniaturas sem brilho de Camila, estavam vestidas como se fossem a uma festa, de mãos dadas com o pai. Ele sim, o digno viúvo.
Me sentia invisível olhando para o homem que nada sabia sobre a mulher que vivia com ele. Os sonhos, delírios, loucuras, ciúmes, devaneios e medos de Camila eram todos meus. A fragilidade e a beleza, tudo isso morria apenas para mim, e não para ele.

Naquele palco de colônia alemã no interior do Rio Grande do Sul, Camila era apenas a esposa linda do clínico da cidade, tão dedicada e correta que se sentia culpada de ir à capital toda a semana para as aulas do pós.

Para mim ela era a mulher, a amante, o prazer do encontro, a dor da partida constante. Ela nada me trazia daquela vidinha pitoresca. Nenhuma palavra sobre ser mãe, sobre o futuro ou passado, isso não nos interessava.

O sol bateu em meu rosto, já se pondo. O cortejo se desfez. As meninas estranhas, seu pai e família permaneceram junto ao caixão.
Segui caminhando em direção a eles, os olhos interioranos do médico encontraram os meus. Só então as lágrimas vieram. A legitimidade da dor não era minha e chorei ainda mais. Fui até o cimento fresco e toquei a ponta dos dedos. Camila não estava ali, apenas uma jovem senhora desinteressante, minha desconhecida. Chorei mais, e mais ainda. Talvez para estragar a paz da família perfeita, talvez por inveja, ou somente por saudade das risadas soltas de Camila.

Dei as costas para o atônito marido. Liguei o carro e iniciei a descida da serra. Hoje era dia de sopa de capeletti em casa, e Lígia me esperava com as crianças.