domingo, 26 de setembro de 2010

O Sofrimento está na Percepção, não no Fato.

sábado, 4 de setembro de 2010

Dentro







Ao andar pelas galerias do pequeno museu, Tereza sentia ainda a tontura da corrida que dera até chegar ali. A subida da ladeira às pressas fez seu coração acelerar, e seu peito arfando causava a sensação de sufoco e zoeira. Mas o mais forte de toda a confusão mental era a lembrança dos gritos de Armado ainda em seus ouvidos. “Vagabunda, desgraçada, fica comigo.”

Nem lembrava bem como conseguira escapar entre a turba em frente ao prédio. Agora, caminhando devagar, recuperando o fôlego, começou a imaginar quantas pessoas se deram conta de sua fuga. Talvez a polícia estivesse chegando a qualquer momento para saber o motivo da briga, ou qual sua relação com o garoto, que agora deveria estar seguindo para o conselho tutelar.

Sua saia estava rasgada e a blusa suja. O chinelo era só uma tira entre os dedos e outra que prendia atrás do tornozelo, e para sua sorte resistira aos paralelepípedos imperiais que voaram sob seus pés no caminho. O cabelo estava como sempre, pois era assim mesmo, grudado na cabeça, sem forma. A boca seca fazia a respiração doer corpo adentro. Mas o mais difícil era segurar as lágrimas que vinham rasgando sua garganta e eram engolidas com força, como uma onda impedida de quebrar. Tereza não queria chorar, pois poderia ser o fim de seu disfarce. Com aquela quantidade de turistas dentro do museu na semana santa seria impossível alguém achá-la.



Não entendia a razão de tanta raiva de seu filho. Ela apenas estava fazendo o que sempre fez... Trabalhando, cuidando de sua vida, ganhando seu pão. Afinal, não era disso que a vida era feita? De uma série de dias seguidos e cinzentos, preenchidos de horas de trabalho, trocadas por moedas inúteis, que eram novamente trocadas por uma comida ruim e bebidas sem gosto, que logo se transformavam em urina ardida pra sair, e cocos fétidos, que logo iriam parar nos esgotos da pequena Esmeralda, uma parte que os turistas não conheciam da histórica cidade.

Armando ainda queria mais dela. Carinho, amor e atenção. Essas palavras que a novela mostra, mas que são apenas idéias de quem tem tempo pra trabalhar menos. De onde um garoto criado num mundo sem sonhos podia esperar mais do que a troca estúpida de suor por esgoto?

Desde que havia entregue seu pequeno para a tia criar, sabia que a vida seria um pouco menos difícil. Afinal sem ter que correr para dar a janta e lavar roupas e levar na escola e costurar furos em calças e cortar cabelos e unhas e catar piolhos e olhar nos olhos daquele menino, parecia que as coisas voltavam a ser o que sempre foram, simples, retas, duras, sabidas.

Nunca gostou daquele excesso de necessidades que o pequeno tinha trazido quando chegou ao mundo sem ser convidado. Choro demais, riso demais, toques demais, quenturas no peito que ela não sabia aplacar. Melhor não ter por perto...

Mas não importa quanto tempo passe, o menino não esquece dela. Volta mais e mais uma vez tentando falar, reclamar, pedir ou oferecer. Não percebe que ela nem consegue entender tanto desejo, não conhece essa espera... Nem por ele ela esperou. Ele chegou sem ser chamado e sem avisar. Seu corpo apenas foi arredondando, sua fome aumentando, o sono ganhando horas do dia e lágrimas que vinham do nada. Até que numa madrugada longa, Tereza sentiu uma água quente descer pelas pernas, uma dor nas virilhas e um fogo ardido lá em baixo.

Dona Alzira, a patroa, não entendeu nada quando ouviu os gritos de Tereza, mas entendeu tudo quando entrou no pequeno quartinho e viu a mulher de pernas abertas.

No hospital a surpresa, um menino saiu de dentro dela como se fosse uma coisa normal. Um bebê que lhe entregaram nos braços e que surgiu assim, do nada, pra nada.

Se Tereza saiu do hospital com o pequeno faminto e sem nome nos braços foi porque não sabia que havia alternativa diferente. Talvez se a freira tivesse perguntado sobre a possibilidade de deixá-lo ali, ela não tivesse tido dúvidas, afinal chegou de repente, poderia partir também.

E foi assim que surgiu Armando, nome dado pela patroa depois de uma semana de nascido, já que Tereza mal conseguia dar teta à boca aberta do pequeno. Nem seus mamilos tinham forma de bico, quase retos, doídos e rachados. Por isso Armando bebeu leite e sangue por uns dias, ficando mais rosado do que gordo.

Tereza mesma nem sabia bem o que uma mãe fazia. A sua, nem conheceu direito. Mal chegou na cidade com ela no colo e sumiu no mundo. Foi tia Deusdina quem lhe deu de comer e lhe arrumou emprego desde que cresceu um pouco e consegui carregar algumas coisas e lavar outras, cozinhar umas comidas e buscar compras, e essas coisas que se fazia, e faz, em Esmeralda, na casa dos que tem dinheiro e dão um pouco pros que não tem, em troca de fazer o que eles não fazem. E ela cresceu assim, entre senhoras e meninas enfeitadas com fitas que nem lhe olhavam nos olhos, muito menos ela queria. Só fazia fazer o que lhe mandavam, assim era pra ser.

Então agora, com o menino, esperava que o tempo passasse logo e ele pudesse começar a fazer as coisas que tinham de ser feitas e deixasse de precisar de tudo, pra que ela também pudesse fazer aquilo que devia, sem parar para atender quando ele chamava.

Dona Alzira já reclamava que as coisas estavam precisando de mais atenção e ela recorreu à Tia Deusdina. “Deixo ele aqui de dia e pego de noite. Como a senhora costura, pode ficar com ele e eu dou metade do que ganho”. Deusdina já tinha criado pra lá de dez e mais um não seria difícil. “Eles se criam sozinhos minha filha, e logo que crescer um pouco mando pro bar do seu Valdevi pra ajudar no balcão.”

E agora sentada no museu olhando pra estátua que, contam, foi feita por um aleijado, Tereza lembrava do dia que ela passou a ver o menino só no sábado, que foi ficando noite e dia com a tia, pra alívio da patroa, e mais ainda do patrão que já não podia fazer as visitas noturnas desde antes do Gritão nascer, como ele dizia.

Da patroa ela nem reclamava, era boa. Ou pelo menos não era ruim. O patrão, ao contrário, tinha um cheiro tão forte de fumo que lhe dava enjôo quando tinha que deitar com ele. E deitava porque sabia que era o que devia fazer, desde criança.

Deusdina já tinha lhe explicado como era, na primeira vez que lhe pegaram, ainda menina, e assim foi sempre. Bom mesmo ela nunca achou, mas ruim também não era. Ardia as vezes, outras não, mas era sempre rápido e logo podia dormir. Os homens pelo menos eram apressados e isso ajudava a não se cansar daquele cheiro azedo e doce que tinha deitar. Não ligava pra sujeira que fazia, pois não conhecia diferente.

E assim foi, que Armando foi ficando maior e aprendeu o caminho da casa de Tereza indo bater lá pra pedir benção, e pedir comida e pedir colo e depois pedir dinheiro, e mais ainda explicação.

Os patrões então acharam que Tereza já tinha ficado ali por muito tempo e o garoto andava aparecendo demais, e já era hora de buscar outro lugar.

Tereza encontrou emprego no bar da Cidade Alta onde serviam cachaça e prato feito, e ela lavava, cozinhava, servia, limpava e fechava tudo, se fosse pra ser. Mas guardava uma vianda pra levar pro menino em casa da tia porque ele andava comendo demais, e o dinheiro já não dava conta, e ainda mais agora que tinha que pagar um quarto na pensão, pequeno mesmo que não cabia Armando.



Mas o menino cismava de achar ruim ficar na tia com mais quatro, se ele era o único que tinha mãe. Coisa estranha achar que pode ser diferente do que é. Tereza nem respondia pro menino essas coisas sobre como deveria ser. Diferente é aquilo que não é, e como ela poderia falar sem saber?



Mas Armando não entendia essa lógica e ela não entendia suas dúvidas e cada vez mais não tinha o que dizer ao garoto, e cada vez mais evitava ver e ouvir suas queixas. E foi assim que mais brabo ele ficou e começou a vir brigar no bar. E ela logo teve que sair pra outro emprego, e mais outro.

Até que ele resolveu que deveria saber quem era o pai. E lá isso existe menino? Pai ? Isso só vi mesmo em casa de gente rica, porque pobre não tem pai, e esquece toda essa bobagem, e me esquece também que já te dei o que tinha pra dar e vai cuidar da tua vida.

E foi assim que Tereza acabou correndo ladeira acima, de chinelos e roupa rasgada pelo desespero do filho que teimou em não se conformar.

E ali, no museu, olhando a estátua de olhos saltados, Tereza se assustou quando sentiu que uma onde forte demais subiu, vazando pelos olhos e boca, virando som de choro que ela nunca tinha ouvido tão forte nem de tão perto, assim mesmo, de dentro, de dentro.